terça-feira, 12 de outubro de 2010

"Terra em Transe" (primeira parte)

A Fundação Getúlio Vargas indica uma lista de filmes a serem vistos pelos vestibulandos que pretendem ingressar em sua faculdade.


Dentre muitos bons filmes existe um em especial que me chamou a atenção.

Trata-se de “Terra em Transe” (1967) de Glauber Rocha. Ele foi e ainda é, sem dúvida, o maior cineasta brasileiro. Portanto, um nome imprescindível para as novas gerações conhecerem.

Dono de uma câmera aflita, vertiginosa, no melhor estilo neo-realista, importado de Rossellini, Glauber pensou o cinema como objeto de denúncia, de transformação da sociedade brasileira. Pensamento que culmina na criação do Cinema Novo.

“Terra em Transe” não é diferente disso, e faz coro a esse estilo sedimentado pelo Cinema Novo. O filme retrata o caos político brasileiro (e metonimicamente o da América Latina de então) no período anterior à ditadura militar e ao golpe de 64; é o “transe” que ele propõe na seguinte frase: "Convulsão, choque de partidos, de tendências políticas, de interesses econômicos, violentas disputas pelo poder é o que ocorre em Eldorado, país ou ilha tropical. Situei o filme aí porque me interessava o problema geral do transe latino-americano e não somente do brasileiro. Queria abrir o tema "transe", ou seja, a instabilidade das consciências. É um momento de crise, é a consciência do barravento".

O filme se passa no fictício país “Eldorado” que segundo o próprio Glauber Rocha é também uma ilha tropical, o que transmite certa ideia de deriva, situa o lugar em que o filme é encenado em meio ao oceano Atlântico, desconexo do continente. Essa deriva não é só geográfica, a estrutura política de Eldorado é arcaica e ultrapassada, como se estivesse à deriva em relação a outros modelos ou em relação ao que se espera de uma democracia; exatamente igual à estrutura do Brasil na década de 60 e, em certos pontos, similar à de hoje. Essa é a chave para discutir “Terra em Transe”, o filme não é datado, retrata um cenário facilmente encontrado no Brasil atual: corrupção, populismo e demagogia barata, brigas desonestas pelo poder, fisiologismo e por aí vai...



A narrativa



“Terra em Transe” narra a história de um poeta, Paulo Martins (Jardel Filho), que encarna a inconstância política latino-americana. Primeiro apoia o senador fascista Porfírio Diaz (Paulo Atran). Depois deixa Diaz e vai para um distrito de Eldorado, Alecrim, onde encontra Sara (Glauce Rocha), uma ativista comunista. Junto com ela apoia a candidatura do vereador Felipe Vieira (José Lewgoy) a governador de Alecrim. Vieira, um demagogo populista, era um pretenso progressista que prometia melhorias a um povo miserável; porém, depois de eleito governador com os votos de operários e camponeses, se subjuga aos interesses de fazendeiros que financiaram a sua campanha, e se mostra um impotente.

Uma cena que ilustra muito bem a traição do espírito que movimentava o apoio de Sara e Paulo à candidatura de Viera é quando no declive de uma colina, o governador Vieira conversa com um camponês que humildemente se manifesta contra a tomada de suas terras, que sua família havia ocupado há muito tempo e feito delas o seu sustento. Paulo interrompe a conversa, tentando defender a quem havia sido leal até então (o governador Vieira), e oprime o camponês dizendo que ele e sua gente não sabiam de nada e que ao camponês nada prometeram. Nesse momento a câmera filma um plano aberto mostrando no declive da colina a hierarquia e a opressão: em cima se encontram Vieira, Paulo e os guarda-costas de Vieira e logo baixo, sendo passo a passo empurrado para a escória da sociedade, encontra-se o camponês.

Depois, um coronel ligado ao governo mata esse camponês, um dos líderes da massa que havia votado em Felipe Vieira. A morte do pobre homem é o estopim para Paulo, que até tentou apoiar a política adotada por Vieira no episódio da colina, mas não tolera a repressão que iria ser deflagrada pelo governo de Vieira.

Paulo volta à capital de Eldorado onde antes se encontrava apoiando Diaz. Dessa vez, o poeta se junta a Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), um burguês poderoso, dono de empresas de comunicações, de siderúrgicas e de uma petrolífera. Paulo procura o empresário depois de um apelo de Sara, que pede a Paulo que use de sua antiga amizade com Diaz para enfraquecê-lo e fortalecer a persona de Vieira como alguém que pode mudar Eldorado.

A maneira encontrada para executar o plano de Sara é se unir a Fuentes e usar sua TV para divulgar um documentário que destrói a imagem de Diaz.

A ideia era fortalecer Vieira para que pudesse ser um nome forte e modificar Eldorado.

Paulo convence Fuentes a ceder o espaço na TV, dizendo que as empresas dele estavam sendo enfraquecidas pela “EXPLINT” (Companhia de Explorações Internacionais), e que se ele quisesse combater a investida do capital internacional em Eldorado seria necessário investir em uma política agressiva.

No fim Fuentes trai a aliança com Paulo e Vieira e se une a Diaz.

Diaz aplica um golpe e depõe o presidente Fernandez. Paulo propõe a luta armada, mas Vieira se recusa.

O fim do filme é apoteótico, Paulo e Sara dentro um carro ultrapassam uma barreira de dois policiais, numa corrida suicida, em que o poeta morre alvejado por eles. Antes de morrer, Paulo Martins exterioriza o transe que viveu durante todo o filme com a seguinte frase: “A minha loucura é a minha consciência”.

O filme é alinear, filmado de maneira operística ao som de Villa-Lobos, Verdi, Carlos Gomes, e ao mesmo tempo carnavalesca e mística, com sambas das favelas cariocas e músicas do candomblé da Bahia.

O primeiro plano merece atenção especial. Um travelling panorâmico filma o mar e a costa, ao som de Aluê – um canto negro com uma repetição hipnótica –, em seguida um corte visceral para Eldorado, onde acontece a ação, já em ritmo vertiginoso, ao som de uma bateria acelerada. É como se entrássemos em transe.

Nos próximos posts continuaremos a explorar outros aspectos desse grande filme, que merece outros aprofundamentos.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Boca Maldita

Eu e minha boca maldita. Há uma semana atrás postei aqui a seguinte frase: “Eu até que gosto quando um deles morre; um dos grandes... existe esse lado positivo, o das retrospectivas.”.


E não é que nessa semana morreram de uma vez só o diretor Arthur Penn e o ator Tony Curtis!

Não era pra tanto! Nem colocaram alguma coisa do Chabrol em cartaz e vem uma dobradinha desse naipe.

Peço desculpas desde já a todos os cinéfilos que devem sentir o vazio da perda de dois gigantes como os dois.

E bom, “agora Inês é morta”, ou melhor eles são mortos; mas de toda forma continuamos na espera por homenagens a Chabrol e agora, por algumas a Penn e a Curtis.

Provavelmente, de Arthur Penn, teremos o clássico estrelado pela bela Faye Dunaway e Warren Beatty :“Bonnie e Clyde” – Uma Rajada de Balas (1967), filme que revoluciona Hollywood com a direção forte de Penn que, sem pudor algum, mostrou aos comportados de então violentas trocas de tiro em um enredo que girava em torno de uma dupla de assaltantes.

Quanto a Tony Curtis, pode-se esperar “Spartacus” (1960) e, é lógico, aquela que por muitos é considerada a melhor comédia de todos os tempos: “Quanto Mais Quente Melhor” (1959) – eu ainda a coloco no páreo com “Um Convidado Bem Trabalhão” (1968) interpretado pelo mestre dos mestres, o maior comediante que já passou por estas bandas: Peter Sellers .

Algo interessante que chama a atenção em “Um Convidado Bem Trapalhão” é que, apesar de Blake Edwards ter sido um grande diretor, é a atuação impecável, com um "timing" impressionante em ir até o limite possível do engraçado em situações hiperbólicas, de Sellers que faz do filme uma das maiores comédias da história do cinema.

Já “Quanto Mais Quente Melhor” possui um gênio por trás das câmeras que dirige o trio principal de estrelas; Jack Lemmon, Tony Curtis e ela, a eterna musa de Hollywood, Marilyn Monroe. Billy Wilder, o diretor, não depende inteiramente dos atores para garantir a qualidade do filme (caso de “Um Convidado Bem Trapalhão”). O filme de Wilder é produto de um roteiro sensacional associado a sua “mise-en-scène” eficaz que rege as atuações memoráveis de cada um dos três atores.

Curtis está no auge de sua beleza, assim como Marilyn, e por mais que não seja tão ator quanto o companheiro de filme Jack Lemmon, a sua atuação em “Some Like it Hot” merece destaque.

Apesar dos filmes que eu citei não serem nenhuma raridade e portanto possíveis de serem comprados em DVD em qualquer lugar, cinéfilo que se preze não despreza a telona, o desconforto da grande maioria das poltronas e o simples fato de ver Cinema no Cinema.